Desapontado mas não surpreso, vejo que estão bloqueando as saídas
Proposta de limitação da autocustódia pelo Banco Central é um sinal de que a inflação já saiu do controle no Brasil
Até quinze dias atrás, o grande público americano não fazia ideia da extensão e da violência com que a administração Biden, durante os últimos quatro anos, perseguiu e desbancarizou uma certa classe de empresários a fim de estrangulá-los financeiramente.
Foi só durante a recente conversa de Marc Andreeseen com Joe Rogan que muitos ouviram pela primeira vez o estranho nome Operation Choke Point 2.0 (Operação Estrangulamento 2.0) e passaram a ter alguma ideia de como o cartel bancário utilizou diversas agências do governo americano para tentar sufocar a nascente indústria dos ativos digitais, lá mesmo na sagrada terra dos homens livres e bravos.
No começo do ano passado, Nic Carter já havia descrito o que estava acontecendo em um excelente artigo na Pirate Wires sobre o assunto, mas até recentemente quem não trabalhava com este mercado nos Estados Unidos estava alheio à dimensão do problema e às medidas que estavam sendo tomadas às portas fechadas nos últimos anos.
A Operação Choke Point 2.0 ganhou esta alcunha por ter empregado semelhantes métodos aos da original Operation Choke Point, levada a cabo pelo Departamento de Justiça dos EUA durante a administração Obama, onde o sistema bancário foi utilizado para estrangular financeiramente setores da economia, que, embora legais, eram considerados indesejados pelo paternalismo governamental daquela administração, como o comércio de armas, serviços de prostituição e a nascente indústria legal de cannabis.
Já Operação Choke Point 2.0 nasceu da constatação de que o governo americano, já sob a administração Biden e impulsionado por senadores ligados ao sistema financeiro como Elizabeth Warren, John Kennedy e Roger Marshall, empregou táticas semelhantes, mas ainda mais agressivas, contra a indústria de ativos digitais para também estrangulá-la financeiramente e impedir seu desenvolvimento.
Conversando com Joe Rogan, Andreessen mencionou que mais de 30 fundadores de empresas de tecnologia foram desbancarizados sem justificativa, só por trabalharem neste ramo. Um processo feito às escondidas, sem o devido processo legal, sem regras claras ou chance de apelação, o que Andreesen descreveu como um uso bruto do poder governamental, que pressionou diversas agências reguladoras (como FED, FDIC, OCC, etc), que depois pressionaram diversos bancos, que depois executaram as ordens.
Como todos sabem, ser impedido de usar o sistema bancário é praticamente uma sentença de morte civil no mundo de hoje, seja para pessoas físicas ou jurídicas. Perder acesso à sua conta corrente, mesmo que por alguns dias, pode levar qualquer um à falência. Muitos desses empresário tiveram que trocar de área. A operação foi drástica - ou brutal, como hoje dizem os jovens.
Não só vários empresários foram desbancarizados como também alguns bancos que à época se mostraram amigáveis para servir como rampas de acesso aos ativos digitais como Silvergate, Signature e Metropolitan Commercial Bank foram pressionados ou fecharam suas operações após a pressão do governo. O método não foi de uma proibição direta, mas sim uma pressão indireta através de reguladores que coagiram os bancos a não mais fazerem negócios com empresas de ativos digitais, sob risco de auditorias e sanções.
Um conhecido conceito da ciência política, o de “captura regulatória”, foi usado por Andreesen para descrever como empresas grandes e já muito consolidadas no mercado, como os grandes bancos, conseguem capturar o governo para erguer monopólios legais que agem como barreiras à entrada para novos concorrentes. O sistema financeiro mundial hoje só funciona com base na captura regulatória, por isso é tão difícil distinguir o que é uma ação pública e o que é uma ação privada neste setor. Por mais que haja separação formal entre, por exemplo, bancos privados e Banco Central, eles agem em uníssono em qualquer assunto relevante e se protegem mutuamente. Durante o rolo compressor da Operação Choke Point 2.0., a única resposta estratégica possível para quem trabalhasse neste ramo nos Estados Unidos era aguardar pacientemente até às novas eleições e apoiar o candidato que prometesse acabar com esta interferência indevida do poder.
E o candidato que apareceu foi ninguém mais ninguém menos do que Donald J. Trump, que disse, com todas letras, que iria finalmente acabar com a operação, quando discursou como keynote speaker na Conferência Bitcoin 2024 em Nashville.
O estilo soviético com que o governo americano buscou amputar um setor promissor de sua própria economia demonstra que existia algo a mais além da simples captura regulatória.
Andreesen contou para Joe Rogan só metade da história.
O termo “ativos digitais” é muito desidratado e não explica claramente o que esta classe de ativos oferece aos seus usuários. Na realidade, só dois tipos de ativos têm volume e importância econômica relevante neste setor: Bitcoin e os chamados stable dollars, que são dólares digitais lastreados em dólares em reserva bancária, mas que podem ser usados sem as inconveniências do sistema bancário tradicional, como controle de capitais ou custódia terceirizada. O Bitcoin é uma moeda forte inconfiscável que impede o roubo de terceiros, seja por meio da diluição, seja por meio da transferência. É perfeito para qualquer pessoa no mundo que deseja manter e transferir sua riqueza no espaço e no tempo. E stable dollars são necessários para bilhões de pessoas no planeta que não tem acesso fácil ao dólar bancário tradicional e que moram em países que forçam em seus pobres cidadãos suas shitcoins locais. Com stable dollars e bitcoins qualquer pessoa pode guardar sua riqueza na moeda mais forte do mundo (bitcoin) ou pagar suas dívidas na unidade de conta mais utilizada no planeta (dólar) se assim desejar, sem precisar passar por qualquer banco ou moeda de sua jurisdição local. Desejar guardar e transferir riqueza na moeda que desejar parece ser uma demanda legítima de qualquer pessoa, então qual seria realmente a emeaça que estes “ativos digitais” representam?
Forças muito poderosas foram mobilizadas na operação de estrangulamento não só porque ela apresenta uma ameaça concorrencial a um setor específico, como também porque o setor em questão é necessário para manter o sistema falido de rolagem da dívida pública.
Por mais disfuncional e perdulário que sejam os governos atuais, eles precisam manter o sistema fiat de pé. Isso porque o sistema bancário tal como funciona hoje permite que as economias de todos os cidadão, ou seja, todo dinheiro depositado nas contas dos correntistas seus clientes, sejam agregadas e emprestadas de volta para próprio governo e para outras empresas. Desta forma, o dinheiro depositado no banco financia indiretamente os gastos governamentais e atividades empresariais. Em um mundo ideal keynesiano, esse empréstimo, por si só, “gera” crescimento econômico, além de, é claro, ajudar políticos a serem eleitos financiando gastos de governo.
Esta não é uma mera aliança entre poupadores e investidores mediada pelos bancos. Os sistemas bancários funcionam com reservas fracionárias – ou seja, eles emprestam não só o que eles “guardam” em depósito, eles emprestam múltiplas vezes o valor que seus clientes guardam em depósito.
Cada empréstimo cria novas unidades no sistema fiat e esses valores inflacionados são usados em grande parte para financiar a máquina pública, enquanto os bancos coletam as taxas e juros desta rolagem. Quando estas dívidas e a inflação se acumulam e o governo dá sinais de que não conseguirá continuar a rolá-la nos mesmos termos, uma crise se instaura e passa a haver uma grande negociação de como e em quais condições ela será paga.
Será paga aumentando os impostos? Será paga imprimindo dinheiro (mais inflação)? Será paga diminuindo os gastos do governo? Ou alguma combinação de todas essas opções?
Neste exato momento, está ocorrendo uma negociação implícita e explícita entre vários entes soberanos que se endividaram demais sobre quem pagará realmente (e não apenas nominalmente) por todos os passivos que o governo acumulou nos últimos anos. Passivos que incluem mas não se limitam a: juros da dívida, gastos assistencialistas, “transição” energética suicida, pensionistas públicos de uma população envelhecida e armamentos militares; em resumo, gastos economicamente deletérios.
Tudo isso nos colocou num período muito peculiar da história mundial chamado de crise das dívidas soberanas, pois muitos países dão sinais de que só conseguirão pagar por suas dívidas com uma maxi-desvalorização de suas próprias moedas. A dívida americana, por exemplo, claramente entrou em uma espiral mortal. No momento em que eu escrevo, ela já passa dos USD 36 trilhões, sendo que estava USD 35 trilhões há poucos meses em agosto. Os juros pagos para rolar esta dívida já são maiores do que os custos anuais gastos com a defesa.
Estes são sinais de um governo falido e incapaz de rolar sua própria dívida, por isso a Operation Choke Point 2.0. foi uma ação voltada não só para impedir que algo novo nasça, como também para impedir a saída de quem deseja sair do sistema. Globalmente, estamos falando de um mercado mundial de USD 133 trilhões que deverá encontrar, mesmo que à força, algum denominador desavisado para pagar a conta.
Se nos EUA a administração Biden se mostrou tão agressiva contra a indústria de ativos digitais, o que dizer do Brasil? Os EUA culturalmente ainda se auto-descrevem e se vendem ao mundo como um país livre e um país livre principalmente para fazer negócios e proteger a propriedade, mas mesmo assim agiu desta forma.
A República Brasileira, por outro lado, tem um histórico de hiperinflação, autoritarismo, insegurança jurídica e fechamento econômico. Livre mercado e respeito à propriedade privada são valores alienígenas para maioria dos intelectuais, políticos e juristas locais.
O famoso gestor Luís Shulberger do Fundo Verde disse recentemente que ‘só países em guerra têm déficit tão alto quanto o Brasil’. Habitamos uma terra onde a inflação só não é maior do que a arrogância daqueles que nos governam. Desde que o atual governo acabou com o teto dos gastos para se aventurar no calabouço fiscal, a moeda nacional perde cada vez mais valor em relação ao dólar, estabilizando recentemente acima da barreira psicológica dos R$ 6:
Ao brasileiro comum, que não tem conhecimento nem riqueza o suficiente para constituir empresas offshores (como fizeram Guido Mantega, Roberto Campos Neto, Paulo Guedes e tantos outros políticos e empresários), resta utilizar a classe dos ativos digitais para tentar proteger sua riqueza.
Por isso, foi com desapontamento mas não com surpresa que vi que nosso Banco Central do Brasil decidiu abrir uma consulta pública para limitar a autocustódia de stable coins (ver aqui e aqui), por meio do seguinte artigo:
"Art. 76-N. É vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativo virtual denominado em moeda estrangeira para carteira autocustodiada.”
É óbvio que nossa autoridade monetária não diz os reais motivos desta proibição. É um artigo muito mal redigido porque a rigor qualquer ativo virtual pode ser denominado em moeda estrangeira. Mas se aqui ela quer se referir às stable coins, sua função é obviamente retirar qualquer vantagem prática de se ter, por exemplo, um stable dolar, já que ele deverá sempre estar sob o controle das entidades comandadas pelo próprio Banco Central e não dos próprios indivíduos.
É uma proibição astuta. Ela está direcionada às chamadas “prestadoras de serviços de ativos virtuais”, uma categoria legal nova inventada em 2022 que deu ao Banco Central poder para decidir quem pode operar neste mercado. Nossa autoridade monetária ainda pode se defender dizendo que está servindo a motivos nobres como os da nota publicada:
“Levar segurança jurídica para a prestação desses serviços para os cidadãos e empresas, assim como aumentar a competitividade e a eficiência do mercado de câmbio e das operações de capitais internacionais, mediante aplicação de regulação proporcional ao risco das atividades.” (ver a nota aqui)
Segurança jurídica neste contexto significa impedir que o cidadão tenha qualquer controle sobre suas stable coins, devendo deixar depositada na empresa onde adquiriu, sob a autoridade do próprio Banco Central, como se ele dissesse "vocês não sabem lidar com este ativo tão valioso, então vamos decidir por vocês e ter o controle sobre eles".
Talvez o motivo de o Banco Central ter optado pela proibição indireta da custódia seja para evitar questionamentos de ordem constitucional como vemos em um dos art. 5º da Constituição Federal que diz:
“XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”
A autocustódia de qualquer bem, seja para entrar, permanecer e sair do território nacional, é protegida pela Constituição com princípio da legalidade, então uma simples regulamentação do Banco Central não poderia, a princípio, proibir a custódia diretamente. Seria necessário uma lei específica, aprovada pelo Congresso Nacional, para que isso seja feito.
Infelizmente, penso que esta medida é só o começo de uma perseguição àqueles que querem proteger seu patrimônio da inflação. A renegociação da dívida pública brasileira, ao que tudo indica, envolve fechar as saídas deste curral hiperinflacionário. Os controles de capitais que fazem o sistema fiat ser o que é estão aos poucos sendo impostos às empresas que lidam com os ativos digitais.
Não tivemos, em terras brasileiras, uma Operation Choke Point 2.0 porque as poucas empresas desta área no Brasil logo se associaram o governo para se submeterem ao guarda-chuva regulatório do Banco Central. O governo, no Brasil, venceu de W.O.
Agora querem impedir a auto-custódia das stable coins. Logo buscarão impedir também autocustódia do Bitcoin. Se não conseguirem proibir diretamente, tentarão limitá-la e regulá-la ao máximo, criando cada vez mais impostos, condições de uso via Real Digital/DREX e deveres acessórios de autodeclaração.
Nosso Banco Central teoricamente deveria agir como guardião da moeda nacional, do Real brasileiro, impedindo seu abuso e desvalorização por parte dos bancos e governo. Mas, na prática, ele trabalha pela domesticação do próprio brasileiro, tratando-o como incapaz de fazer sua auto-custódia.
Seria interessante falar sobre alternativas e práticas que temos para se proteger dessa perseguição.
Falou tudo. Dias virão em que, o governo, em puro desespero, tentará tomar a riqueza das pessoas, que se recusaram a serem roubadas, e que compraram btc. Por isso eu digo: compre btc, estude pra ter convicção em mantê-lo em autocustodia, e já vai sondando a possibilidade de ter de deixar o país, nem que seja do ponto de vista fiscal.