É provável que você já conheça os detalhes apetitosos envolvendo a quebra da corretora FTX e como seu fundador agora ex-CEO Sam Bankman-Fried (SBF:“Scam Bankster-Fraud”) junto com alguns comparsas conseguiram montar nas Bahamas um esquema gigantesco de alavancangem de shitcoins que acabou explodindo na semana passada.
Se não conhece os detalhes, recomendo essa thread da Paradigma Education com os highlights da provável futura de série da Netflix envolvendo esse que é um dos maiores golpes financeiros da história recente.
Além da bela dose de entretenimento gratuito, podemos usar o caso da FTX para explorar o que ele tem a nos ensinar sobre fraudes, falências, corridas bancárias e a natureza do capitalismo.
Antes de mais nada: A FTX, junto com seu hedge fund Alameda Research, fazia parte de um esquema fraudulento que envolvia mais de 130 empresas, subsidiárias no mundo todo e fundos de venture capital, que só parou de pé por tanto tempo porque conseguiu comprar apoio político (SFB foi o segundo maior doador para a campanha de Joe Biden, perdendo só para George Soros) e midiático (Tom Bandy e Gisele Bündchen eram investidores e garotos-propaganda oficiais da FTX, além de dezenas de outros repasses milionários para veículos de comunicação).
E por que fraudulento? Por dois motivos. Primeiro: seu principal negócio era promover, listar e negociar shitcoins, que nada mais são do que artimanhas digitais criadas para ludibriar as pessoas usando siglas e palavras pseudo-sofisticadas como “cripto”, “tecnologia blockchain”, “DeFi”, “yield farming” e “ICOs”.
Por mais que negociassem Bitcoin também, esse não era o foco da FTX, já que Bitcoin é uma moeda forte e portanto um ativo para se deixar longe das mãos das corretoras. Recomenda-se sempre fazer auto-custódia e retirar o bitcoin das corretoras assim que possível - de fato, quando a FTX faliu ela não tinha em seu balanço nenhum bitcoin e embora deva o equivalente a USD 1,4 bi em bitcoins para seus clientes. Por conta dessa natureza não especulativa do Bitcoin, as corretoras não se interessam muito por ele.
Mas shitcoins são diferentes e altamente lucrativas para as corretoras. Funciona assim. Shitcoins são primeiro emitidas em forma de tokens virtuais para um grupo seleto de investidores e programadores. O nome disso é pre-mine, ou seja, pré-mineração, que significa a emissão de muitos desses tokens para quem primeiro entrou no negócio e vai se beneficiar dele. Depois de distribuídas para este público seleto, essas shitcoins são listadas nas corretoras (como a FTX, que ganha comissão com isso) e são promovidas por fundos, influencers e celebridades como sendo uma grande “disrupção” ou revolução no mundo das finanças digitais.
Depois que esses token são comprados nas corretoras pelo varejão incauto que caiu na propaganda, eles são vendidos rapidamente por aqueles que primeiro participaram do pre-mine, deixando o varejo com o raspo do tacho. Pump and Dump. Podemos ver esse roteiro sendo repetido todo ciclo, a cada quatro anos aproximadamente, mas cada vez com um nome diferente. Alguns duram pouco, como a FTT - token da própria FTX - ou Solana (-97% este ano), que foi muito promovido pela FTX. Outros têm uma vida mais longa como o ETH (token 70% pré-minerado da empresa Fundação Ethereum), que ainda está circulando e sendo promovida por muita gente. O site CoinMarketCap lista hoje mais de 21 mil desses tokens, então aparentemente este modelo de negócios fraudulento não vai acabar tão cedo.
Fazer pump and dump de shitcoins é um procedimento claramente anti-ético porque busca enganar pessoas facilmente influenciadas. Pessoas acham que estão comprando algo de valor, mas só estão beneficiando um grupo pequeno de domina o protocolo e detém a maioria desses ativos virtuais. Porém, alguns mais agnósticos quanto à moralidade desta prática dizem que corretoras como a FTX nada mais fazem do que que vender um tipo de um bilhete de loteria que muita gente compra esperando ficar rico do dia para a noite. Ninguém compra shitcoin porque é obrigado e, se a pessoa acreditou na propaganda, deveria ter pesquisado melhor antes de colocar dinheiro nestes negócios fraudulentos. Faça sua própria pesquisa, assuma você mesmo a responsabilidade por seu dinheiro. Se você foi enganado, a culpa é sua.
É uma forma de ver o mundo.
Mas o esquema da FTX/Alameda era um pouco mais sofisticado do que só promover, negociar shitcoins e cobrar taxas por isso. Como foi revelado pelo documentos juntados ao pedido de falência, eles também usavam de uma prática muito comum no sistema financeiro. Fracionavam suas reservas e usavam os depósitos dos seus clientes para tipo de alavancagem financeira usando seu hedgefund chamado Alameda Research.
Mesmo corretoras não sendo bancos de “criptoativos”, muitas pessoas e até instituições deixavam seus tokens lá porque a FTX prometia renda fixa em seus chamados yield products. Ocorre que a renda (yield) que um cliente recebia era financiada com a entrada de novos depositantes, em um esquema muito parecido com o de uma pirâmide financeira.
Tudo ocorria aparentemente bem até ano passado, quando ainda sobrava dinheiro barato para derramar nos fundos de venture capital e afins, então sempre era possível atrair novos clientes com novos tokens e novas promessas de rendimentos. Essa maré mudou quando o FED anunciou que, por causa da inflação, iria subir os juros agressivamente e reduzir seu balanço. Assim, o dinheiro fiat que antes era abundante para derramar nestes projetos de uma hora para outra secou.
Praticamente o ano todo de 2022 foi quebra atrás de quebra dos mais variados esquemas deste tipo, a começar pela Terra/Luna em maio, depois Celsius, Voyager, agora FTX, BlockFi e nada indica que vamos parar por aí. O mais incrível era que no meio do ano a própria FTX estava comprando e absorvendo algumas dessas empresas, sem ninguém entender como nem por que comprar tantas empresas quebradas. Só agora nos foi relevado que a contraparte dessas compras era usar os depósitos dos clientes das próprias empresas falidas (como a BlockFi) para continuar o esquema de alavancagem. Não eram negócios nada saudáveis e bastou que uma concorrente (Binance) levantasse suspeitas sobre a solidez da FTX para gerar uma corrida bancária dos clientes e tudo ruir.
Com a boa vontade da mídia ao seu lado, vejo várias reportagens tentando explicar esta situação como se SBF e sua turma de “gênios da finanças” simplesmente calcularam mal o risco e acabaram colapsando por causa disso. Não é nada disso.
Todo este modelo de negócios sempre foi fundado em fraudes e na alocação errada de dinheiro propiciada pela política expansionista dos bancos centrais. Dada esta instabilidade imanente, muita gente já vinha alertando desde junho, quando a FTX comprou a Voyager, que o negócio iria desmoronar cedo ou tarde.
A maior diferença que há entre este caso da FTX com uma corrida bancária tradicional é que não há um banco central para salvar fraudadores deste tipo, como ocorreu na crise financeira de 2008. Quando um banco tradicional quebra, espera-se que o governo (através de seu banco central) tome algum tipo de atitude para “salvar” a situação. O que normalmente acaba ocorrendo é a diluição do poder de compra da moeda (impressão de novas unidades monetárias pelo banco central) para comprar os ativos dos bancos privados falidos (injetar liquidez), empurrar o problema para frente e degradar ainda mais a moeda. O problema só cresce pois se acaba criando incentivos mais perversos como o chamado moral hazard: sabendo que sempre haverá um banco central para salvá-los, os banqueiros acabam sempre operando com cada vez mais risco, muitas vezes operando na zona cinzenta da legalidade, fragilizando ainda mais o sistema.
Não existe capitalismo sem falência. Quando uma empresa vai à falência, este é um sinal de que o capital organizado daquela forma não foi alocado para seus usos mais produtivos, pois o que foi produzido não foi aceito pelos consumidores nos preços ofertados.
O que fazer numa situação dessas? Avalia-se o patrimônio remanescente, listam-se os credores (clientes, funcionários, bancos, fornecedores, etc), os ativos são liquidados e os credores são pagos na medida do possível. Investidores podem perder tudo que investiram, mas isso vem da natureza de qualquer empreendimento. É impossível de antemão saber se um negócio vai ser aceito pelo mercado ou não. Por isso empreendedores e investidores precisam estar dispostos assumir riscos.
Isso, porém, não dá uma carta branca para que o empresário cometa fraudes e use indevidamente o patrimônio de seus clientes, como no caso da FTX. Certamente haverá um clamor popular por mais regulação depois deste caso. Ironicamente, SBF, quando quebrou, estava justamente fazendo lobby no Congresso americano para uma legislação que lhe fosse favorável nos âmbitos regulatórios da SEC e CFTC. Mais uma vez isso prova que regulação governamental é indissociável de captura regulatória.
Aquele que tem bitcoin e faz sua própria auto-custódia não fica preocupado com um caso desse. O Bitcoin, uma moeda forte inconfiscável, foi justamente criado para evitar os riscos inerentes a qualquer terceiro que lide com seu dinheiro, seja na custódia ou transferência. É impossível imprimir mais bitcoins para salvar uma corretora ou banco, então quem acumula bitcoin sabe que não será diluído para salvar malfeitores como Scam Bankster-Fraud. Bitcoin não é “cripto”, embora muita gente só vá aprender isso com muita dor.
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