Por que muitas empresas estão entesourando Bitcoin?
Estamos diante de um novo paradigma monetário e isso implica uma mudança implícita na nossa percepção de tempo, capital e valor
No meu último post, tracei uma breve linha temporal descrevendo os últimos anos de adoção corporativa do Bitcoin até chegar à Méliuz (CASH3), a primeira empresa de capital aberto no Brasil a comprar Bitcoin para o caixa. Mas não entrei em detalhes sobre quais são as diferentes forças que têm impulsionado complexo fenômeno do entesouramento de Bitcoin por corporações.
Buscarei preencher esta lacuna agora.

As causas deste fenômeno têm intrigado ambas das pontas dos espectros econômicos atuais, já que é muito difícil entender como podem coexistir dois mundos tão distintos. Os altos sacerdotes das finanças tradicionais que ainda não entenderam as propriedades superiores do Bitcoin enquanto bem monetário obviamente também não entenderão como ele pode fazer parte de uma nova estratégia de tesouraria corporativa. Na outra ponta do espectro, alguns bitcoiners se perguntam com desconfiança como um protocolo monetário descentralizado desenvolvido por cypherpunks pode aos poucos ser incorporado nos balanços de grandes entidades centralizadas, algumas das quais têm utilizado, ainda por cima, os mais diversos instrumentos de finanças corporativas disponíveis no mercado para multiplicar a quantidade de bitcoins em caixa.
Para a minoria já avançou um pouco neste assunto e enxerga sim um ponto de convergência entre estes dois mundos, a resposta-padrão não vai muito além daquela que nos foi dada pelo próprio Michael Saylor em inúmeras entrevistas ao longo dos últimos quatro anos. Em resumo, diante de uma crise existencial, Saylor viu a desvalorização do dinheiro em caixa num cenário de inflação alta e de taxas de juros negativas. Como fundador, acionista e administrador, percebeu que a riqueza líquida entesourada durante décadas por sua empresa estava derretendo, ao mesmo tempo em que tinha a obrigação estatutária de proteger seu valor.
Bitcoin foi simplesmente a melhor alternativa que Saylor e tantos outros depois dele encontraram para preservar o valor de seus respectivos empreendimentos. A lógica corporativa, segundo esta resposta, não seria muito diferente da lógica individual. O Bitcoin seria uma proteção - um hedge - contra a desvalorização da moeda fiat, por isso é bom ele que faça parte da tanto da poupança de indivíduos como também do caixa de empresas.
Embora correta esta explicação, creio que ela capta somente a superfície deste fenômeno e que estamos diante de algo muito mais profundo surgimento das assim chamadas Bitcoin Treasury Companies (BTCs).
A lógica econômica apontou para aquilo que Parker Lewis descreveu em 2020 como A Grande Desfinanceirização pois, ao contrário do que muitos entusiastas do “ecossistema crypto” esperavam, não temos visto o desenvolvimento saudável das assim chamadas finanças descentralizadas (DeFi). O prosseguimento desta fantasia implicaria na hiperfinaceirização do mundo através da tokenização de ativos reais, algo que realmente nunca fez muito sentido, pois resultaria no escambo constante de múltiplos tokens em diferentes nichos econômico-sociais. Depois de tantos anos, agora ficou mais evidente que os projetos neste sentido eram meros sintomas das patologias do mundo fiat, subterfúgios encontrados para “democratizar” a senhoriagem no meio digital. Hoje, em 2025, vemos final melancólico daquela explosão cambriana de novos tokens de ICOs (Initial Coin Offerings) que durou entre 2014 e 2017 e que agora está naquele clima de fim de festa com a canibalização incessante de memecoins com a sobrevida de semanas, dias ou até horas.
Não vimos tokenização da economia mas felizmente algo muito superior e relevante: a bitcoinização das finanças. Mas, para entender este processo, temos que investigar o subsolo das mudanças tectônicas que estão alterando a natureza do próprio capital e cuja força motriz é o próprio Bitcoin. Estamos diante de um novo paradigma monetário e isso implica uma mudança implícita na nossa percepção de tempo, capital e valor.
Em sua primeira década e meia de existência, o Bitcoin foi progressivamente emergindo para se provar como o melhor e mais seguro dinheiro do mundo. Durante esta primeira fase, o Bitcoin provou ser uma excelente tecnologia de poupança, uma reserva de valor inconfiscável imune à censura e à diluição arbitrária. Levando em conta importância da proibição do duplo gasto e do cap de 21 milhões, os early adopters que fizeram parte da época puramente monetária do Bitcoin corretamente ressaltaram as propriedades critpográficas que fazem com que cada UTXO - tecnicamente satoshis associados a um endereço registrado em um bloco - seja absolutamente escasso, um fato incontestável verificável por todos ao redor do mundo a um custo baixíssimo.
Esta ideia é resumida pela simples fórmula que alguns bitcoiners gostam de citar:
1BTC = 1 BTC
A beleza desta fórmula é que ela capta simultaneamente dois elementos fundamentais: um princípio ontológico e um pressuposto monetário.
O primeiro sentido desta fórmula resume o princípio ontológico da identidade à lá Ayn Rand feito a partir de um olhar interno ao Bitcoin. Com ele, quer-se dizer que o Bitcoin é um sistema autopoiético que não precisa de uma autoridade política externa para validar sua identidade. Não existe um ponto de vista arquimediano externo aos nodes que verificam as regras do seu protocolo e suas unidades constitutivas. Os parâmetros do consenso de Nakamoto são seu próprio ponto de vista arquimediano. Podemos conhecer esta realidade sem a mediação de ninguém.
Mas esta fórmula também pode ser interpretada como manifestação do pressuposto monetário da fungibilidade. Para funcionar enquanto dinheiro, suas unidades devem se equivaler para serem trocadas de forma rápida e barata por outros bens no futuro, facilitando as trocas econômicas. Uma mercadoria valiosa que não seja fungível, por exemplo, um quadro de Tintoretto, é incapaz de funcionar desta forma, já que é impossível despedaçá-lo em unidades de mesma qualidade e quantidade. A unidade básica de um quadro do Tintoretto é sua própria totalidade e não seus pedaços esparsos.
Aqui uma vale uma observação. A rigor, interpretar como pressuposto da fungibilidade traz uma leve modificação na fórmula 1 BTC = 1BTC, pois não significaria apenas o princípio da identidade, mas sim que qualquer unidade de Bitcoin seja igual a qualquer outra qualquer unidade Bitcoin. Isso em notação lógica ficaria:
∀x ∀y (x = y)
Em que:
∀x: "Para qualquer x" (um BTC qualquer).
∀y: "Para qualquer y" (outro BTC qualquer).
x = y: "x é igual a y", ou seja, qualquer BTC é igual a qualquer outro BTC.
Interpretada desta forma, a fórmula quer dizer que todos os elementos do conjunto em questão (todos os "BTCs") são idênticos entre si para funcionar enquanto bem monetário.
É só com o pressuposto da fungibilidade que o dinheiro funciona como a forma mais líquida de capital, aquilo que, diante da incerteza das vontades e das circunstâncias econômicas, renunciamos consumir no presente para ser transformado facilmente por algo de valor no futuro.
Porém, enquanto dinheiro, ele é apenas a representação de uma riqueza potencial. Uma riqueza que pode somente ser trocada mas não produzida pelo próprio dinheiro. Diferente das fantasias keynesianas tão celebradas por políticos e banqueiros centrais e até por cryptobros, mais dinheiro não gera mais riqueza. Gerar mais unidades monetárias só irá diluir a representação de uma riqueza que antes precisou ser criada com capital produtivo, este sim infungível e escasso, pois demanda muito tempo e energia para ser produzido, seja ele uma fazenda, um padaria, uma fábrica ou até um bom software, só para citar alguns exemplos.
Fiz toda esta digressão para finalmente dizer que parte do estranhamento em relação ao recente processo de entesouramento do Bitcoin por corporações ocorre porque estamos em uma fase de transição. De alguns anos para cá, ele passou funcionar não só como moeda forte utilizada eminentemente por indivíduos para se expandir como capital digital utilizado por corporações. Neste processo, o próprio pressuposto monetário da fórmula 1 BTC = 1 BTC mostrou ser mais uma questão de grau do uma realidade de fato. Mesmo tecnicamente, cada UTXO terá sua liquidação final gravada em um bloco específico, logo cada UTXO será necessariamente diferente do outro pois terá uma cadeia de transições diferente. De forma parecida, a composição molecular de cada moeda de R$1 ou de cada lingote de ouro é única e cada nota de papel-moeda tem seu próprio número de série, mas estes fatos não impedem, na maioria dos casos, sua fungibilidade.
O importante é que, para além das questões técnicas, um bitcoin no balanço de uma empresa ou como quota de um fundo pode ter um valor maior ou menor a depender do uso que se faça dele e de seu contexto econômico. Um bitcoin que esteja institucionalmente no caixa de uma empresa pode dar a ela acesso a pools de capital que somente com dinheiro fiat ela não teria tendo em vista as diferentes equações de retorno e risco. Isso pode fazer com que este Bitcoin entesourado pela empresa tenha valor econômico e estratégico superior a um Bitcoin que esteja somente atuando como poupança pessoal de um indivíduo que só se quer focar em suas vocações pessoais sem ser perturbado por ninguém.
Como ativo superior, o Bitcoin não só está desmonetizando ativos que foram indevidamente monetizados durante a vigência da moeda fiat, mas também funciona como uma garantia superior para lastrear vários tipos de contratos e operações financeiras. Grande parte dos problemas hoje existentes nas finanças advém na má qualidade de garantias contratuais, que muitas vezes são ilíquidas, difíceis de executar ou, pior, se degradam com o tempo, como é o caso de imóveis, que são, hoje, praticamente uma das principais garantias da finanças tradicionais.
Além de atrair capital por ser uma garantia mais líquida e sem risco de contraparte, outra consequência positiva de colocar Bitcoin no caixa é atrair os diferentes tipos investimento que possam estar represados e que só podem fluir em forma de compra de participação societária nas Bitcoin Treasury Companies. Quem aperfeiçoou a arte de atrair este tipo de investimento foi certamente a Strategy, que oferece um leque de opções que vão de debêntures conversíveis até ações preferenciais que funcionam, na prática, com opções de compra futura com um mínimo de rendimento. A característica "conversível" significa que, além do pagamento de juros e principal, o investidor tem a opção de converter o título em ações da empresa emissora, geralmente sob condições predefinidas na escritura de emissão (como prazo e relação de conversão).
Isso é fonte de confusão para muita gente pois permitiu que Strategy conseguisse se expandir sem colocar seus bitcoins em garantia, pois o investidor está confortável em assumir o risco em relação ao valor do papel da própria empresa. Assim, ela conseguiu atrair investidores que querem os retornos do Bitcoin sem sua volatilidade de curto prazo ou até mesmo montando operações sofisticadas com futuros e opções. Mas a Strategy também conseguiu atrair novos investimentos por um motivo mais prosaico. Em muitas jurisdições, está em voga de controles da capitais que impedem a alocação direta em Bitcoin ou até em ETFs de Bitcoin, mas podem muito bem subscrever contratos como esses que a Stategy passou a oferecer.
Todos estes fatores fizeram que algumas Bitcoin Treasury Companies passassem a negociadas com um grande ágio, múltiplos do valor dos Bitcoins que fazem parte dos ativos de uma empresa, trazendo investidores que buscam um retorno ainda maior que o próprio Bitcoin. Por exemplo, no pico de ágio da Strategy em outubro de 2024, ela chegou a ser negociada com um valor 2,5 vezes (ou 250%) maior que o valor dos bitcoins em posse da empresa. Nestes anos também vimos estratégias não tão agressivas e relativamente neutras, como é o caso da Tesla, que simplesmente usou parte do caixa para comprar Bitcoin como uma boa reserva de valor para se ter no balanço e se proteger da desvalorização do dólar americano.
E podemos muito bem ver casos de insucesso. Um bitcoin no balanço de uma empresa ruim ou como quota de um fundo mal gerido, ilíquido e com alto risco de custódia, pode ter um valor econômico inferior ao seu valor de mercado no presente. Foi o que aconteceu durante muito tempo com o fundo GBTC da Grayscale antes de ser convertido a ETF no começo de 2024. Os bitcoins entesourados pelo GBTC durante muito tempo foram negociados com um deságio em relação ao seu valor de mercado, fora das amarras institucionais e regulatórias que lhe tiravam valor. O deságio que começou em fevereiro de 2021 e chegou a ficar em -50% em relação ao valor dos bitcoins em custódia do fundo em dezembro de 2022. Isso só foi se corrigir em janeiro de 2024, quando ele foi convertido em ETF. Foi obviamente um exemplo de financeirização que não deu certo pela forma como o fundo era estruturado e pelas regulações a ele impostas.
Independente se com ágio ou deságio, cada Bitcoin no balanço da empresa representa um capital líquido, algo que não era possível com o dinheiro fiat. Isso porque agora finalmente temos um tipo de dinheiro que representa adequadamente a escassez do próprio capital. Como caixa de uma empresa, o Bitcoin entesourado representa a cristalização líquida do esforço que aquela empresa acumulou no tempo. Se este esforço é representado por um dinheiro cujo valor é diluído no tempo, como ocorre com o dinheiro fiat, todo o sentido daquele empreendimento é voltado para gerar lucros rápidos, mesmo que consumindo capital produtivo no longo prazo. Para tentar preservar a riqueza de se dilui constantemente, todo empreendimento é forçado a alocar mal seu capital em busca de receitas rápidas. Isso explica triste fato de que, embora com crescimento nominal, a produtividade da maioria das empresas não tem mostrado um crescimento sustentável.
Para ilustrar este ponto, vejamos o gráfico do índice de ações globais (Dow Jones Global Index) vs. ouro. Ele mostra que o mercado está estagnado há mais de uma década, mais uma vez flertando com o suporte de longo prazo. O esforço conjunto das maiores empresas do mundo é incapaz de superar a valorização de uma pedra amarela brilhante que não faz nada guardada dentro de um cofre.
Mas podemos recuar ainda mais. Vejamos este impressionante gráfico que encontrei em um longo artigo do David Collum de 2023:
Ele nos mostra que, se considerarmos a expansão monetária (M2) desde 1929, não houve ganho real no índice da S&P. É quase uma grande linha ligeiramente declinada há quase cem anos. Tudo o que achamos que é crescimento é só inflação, expansão da base monetária. Embora muitas empresas tenham pago um dividendo médio considerável ao longo do caminho, o que possa ter tornado estes investimentos lucrativos mesmo considerando a inflação, o gráfico nos indica que estamos há quase um século terrivelmente acostumados a empreender em um ambiente com inflação alta, em um mundo onde acumular dinheiro que se desvaloriza não traz estabilidade, mas sim é destrutivo para o capital da empresa. Para quem acha que o caso brasileiro é muito diferente, recomendo este ótimo post do Renato Amoedo mostrando que no Brasil é ainda pior por causa da inflação do Real brasileiro.
A conclusão que tiro desta análise é que faz ainda mais sentido uma empresa localizada em uma jurisdição com moedas mais inflacionárias que o dólar se tornar uma Bitcoin Treasury Company. Se dinheiro em caixa representa adequadamente a escassez do próprio capital, um empreendimento lucrativo passa a servir para expansão do capital produtivo. Dessa forma, elas se recapitalizam, recebem uma injeção de capital digital com garantias superiores e podem pensar no longo prazo para criar produtos e serviços novos e melhores.
É mais um aspecto da nossa vida em que podemos dizer: Bitcoin fixes this.
Excelente artigo, parabéns.
Fenomenal... Tanto entendimento e conhecimento que vou reler e ler pra compreender mais profundamente!!!