Quando nos perguntamos sobre quem são os autores da literatura universal que criticam a invenção da moeda fiat, pensamos primeiro, é claro, em Johann Wolfgang von Goethe, que dedicou o Livro II de sua obra máxima Fausto para mostrar a moeda fiat como uma invenção diabólica e dissecou as implicações espirituais desta criação nefasta.
Certamente, Goethe, ao desenvolver literariamente a relação entre Dr. Fausto e Mefistófeles, tinha em mente o exemplo histórico de John Law (1671-1729), nobre escocês que trouxe a fortuna ilusória e a consequente ruína para o reinado de Luís XV por meio de sua astuta alquimia monetária. Se você ainda não conhece os detalhes da história de Law e por que ele é conhecido como “pai” das pilantragens que fundaram sistema fiat moderno, recomendo este vídeo explicativo preparado pelo canal Visão Libertária. E, quem quiser entender melhor a importância da obra Goethe para o pensamento monetário moderno, recomendo ler o famoso ensaio publicado em 1985 pelo economista Hans Christoph Binswanger que foi publicado no Brasil com o nome Dinheiro e Magia.
Mesmo curto, é um ensaio excelente, foi uma leitura que me impactou muito e foi fundamental para eu entender não só a superioridade técnica com também a superioridade moral do Bitcoin - aliás, foi este ensaio que eu indiquei no final da minha conversa com João Grilo em novembro 2021.
Muitos, porém, não sabem que o nome máximo da nossa literatura, fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, provavelmente influenciado pela leitura Fausto, também foi um crítico da moeda fiat.
No livro A Economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista, organizado por Gustavo Franco, temos o privilégio de ver nestas crônicas a crítica machadiana direcionada às discussões monetárias da época. Além de romancista, Machado era um grande cronista e foi nas crônicas publicadas nos folhetins da época que o Bruxo do Cosme Velho pôde voltar sua ironia contra a fracassada expansão monetária da jovem República brasileira que ficou conhecida como política do Encilhamento, promovida pelo então Ministro da Fazenda Rui Barbosa.
Nestas crônicas, Machado lamenta os efeitos da inflação que vieram com a proclamação da República, por isso sempre alude à baixa do “câmbio” - ou seja, a desvalorização do mil-réis perante a libra esterlina com lastro em ouro - e as sucessivas crises econômicas que acompanharam. Naquela época, ninguém estava acostumado com uma desvalorização tão grande da moeda. Segundo os cálculos de Raymundo Faoro, entre 1829 a 1887, final do Segundo Império, o custo de vida aumentava cerca de 1,5% ao ano, ao passo que, de 1887 a 1896, este custo aumentou para 11,5% anuais, “números nunca vistos no Império” (Machado De Assis: A Pirâmide e o Trapézio, 1975, Raymundo Faoro, p.182).
Em uma crônica publicada em 1892, rememorando todos as crises econômicas de que se tinha notícia até o começo dos tempos, Machado diz:
“Posso ir antes do meu nascimento, até Law. Grande Law! Também tu tiveste um dia de celebridade, depois, viraste embromador e caíste na casinha da história, o lugar do lava-pratos. E assim irei de século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do Encilhamento, onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da falência universal.
(A Economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista, org. Gustavo Franco, Ed. Zahar, 2007, p. 135)
Depois de ironizar o Encilhamento como se fosse uma forma superior do Paraíso terrestre (não são assim que os planos econômicos dos governos são vendidos até hoje?), Machado, um profundo pessimista, trata até a criação do universo, não como um ato de bondade do Criador, mas como o início de sucessivas falências motivadas pela ilusão do falso enriquecimento.
Dois anos depois, em outra crônica, denunciando novamente a fraude do Encilhamento e os mistérios que envolviam aquele milagre econômico mal explicado, escreveu:
“Os mistérios da religião não nos acendem uns contra os outros; para crer neles basta ter fé, e a fé não se discute. Os do Encilhamento aturdiam por alguns dias ou semanas; mas desde que se descobriu que o dinheiro caía do céu, o mistério perdeu a razão de ser. Quem naquele tempo, pôs uma cesta, uma gamela, uma barrica, uma vasilha qualquer, ao luar ou às estrelas, e achou-se de manhã com cinco, dez vinte mil contos, entendeu logo que só por falsificação é que fazemos dinheiro cá embaixo.”
(A Economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista, org. Gustavo Franco, Ed. Zahar, 2007, p. 183)
O tom geral das crônicas que versam sobre a questão monetária oscila entre ver a desvalorização da moeda como um tipo de fraude ou como um tipo de uma doença até então incurável, como um flagelo recente, que os economistas da época não sabiam explicar ou resolver. O problema da desvalorização da moeda é um “inimigo sorrateiro e calado” (Idem, p. 205). Infelizmente o sucesso da medicina no tratamento de várias doenças parece não acompanhar a restauração da saúde da moeda nacional. Em uma das crônicas, Machado se pergunta qual seria então a cura para esta doença:
O mal do câmbio parece-se um pouco com o da febre amarela, mas, para febre amarela, a magnésia fluida de Murray, que até agora só curava dor de cabeça e indigestões, é específico provado neste verão, segundo leio impresso em grande placa de ferro. Que magnésia há contra o câmbio? Que Murray já descobriu o modo certo de acabar com a decadência progressiva do nosso triste dinheiro e com as fomes que aí vêm, e, em segundo lugar, e os meios de luxo os quartos de luxo, e outras consequências melancólicas deste mal?
(A Economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista, org. Gustavo Franco, Ed. Zahar, 2007, p. 208)
Eu já tinha comentado aqui que o início da nossa República foi altamente inflacionário por causa da impressão de “papeis”, ou seja, dinheiro sem lastro metálico - em 1893, Machado diz que gostaria de encontrar um amigo banqueiro que lhe explicasse “a diferença entre papel-moeda e moeda-papel” (Idem, p.165) - e que isso motivou um grande debate entre duas correntes opostas: os chamado papelistas, defensores do papel-moeda de curso forçado, ou seja, o que hoje chamamos de moeda fiat; e os metalistas, defensores o padrão metálico ou da moeda lastreada. Papelistas, claro, enfatizaram o boom econômico que era gerado pela moeda sem lastro e metalistas não só ressaltavam a estabilidade econômica e civilizacional que só o padrão ouro poderia garantir, como também a natureza essencialmente fraudulenta de uma moeda de papel, criada ex nihilo, sem custo algum.
Afinal, dizem os metalistas com toda a razão, a riqueza criada pela criação de dinheiro é apenas ilusória e o Diabo sempre cobra seu preço posteriormente em forma de crises inflacionárias e desintegração social. Este debate se estendeu no Brasil até que, em 1933, quando o mundo inteiro já estava migrando para para um padrão inteiramente fiat, a corrente papelista venceu por meios ditatoriais com o decretos-leis promulgados por Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha, como expliquei brevemente aqui.
Oito padrões monetários depois, acompanhados por uma crise hiperinflacionária no final do século, só conseguimos nos livrar da maldição da moeda fiat com a invenção do Bitcoin em 2009. Encontramos a magnésia que Machado de Assis procurava que não só nos curou do mal da inflação, como também do tratamento errado de flebotomia econômica praticado pelos próprios bancos centrais.
Sensacional! Basta de seringadelas!
Não imaginava que Machado era redpillado! haha