Tether (USDT): fraude, dolarização ou bitcoinização?
Tether (USDT) como Cavalo de Troia da bitcoinização mundial
No final do ano passado, escrevi o post abaixo sobre a proposta do Banco Central de proibir a autocustódia de stablecoins no país:
Desapontado mas não surpreso, vejo que estão bloqueando as saídas
Até quinze dias atrás, o grande público americano não fazia ideia da extensão e da violência com que a administração Biden, durante os últimos quatro anos, perseguiu e desbancarizou uma certa classe de empresários a fim de estrangulá-los financeiramente.
Expliquei que se tratava de uma medida autoritária para tentar salvar nossa moeda nacional, o Real brasileiro, por meio da qual a autarquia monetária criava uma reserva de mercado junto com os “prestadoras de serviços de ativos virtuais”, uma categoria legal nova inventada em 2022 que deu ao Banco Central poder para decidir quem pode operar neste mercado. Meu argumento era simples: proibir autocustódia de stablecoins é uma forma de governo e bancos brasileiros aumentarem o controle de capitais para tentar proteger o Real brasileiro dentro do seu próprio curral ao manter uma uma demanda artificial para ele impedindo concorrência externa.
Tanto governo quanto bancos sabem que, em um ambiente de liberdade e livre concorrência de moedas, ninguém que saiba fazer conta vai querer usar esta moeda fraca inflacionária chamada Real brasileiro. Além de ser uma péssima reserva de valor, o Real brasileiro é praticamente inútil como meio de troca e unidade de conta fora das cercanias nacionais. Percebendo a natureza deletéria da nossa moeda mas ao mesmo tempo precisando dela, as autoridades brasileiras são bem criativas em encontrar novos meios para fechar os caminhos de fuga do cidadão que queira preservar sua liberdade monetária e seu poder de compra.
Percebendo este movimento de tentar fechar ainda mais a economia brasileira a concorrentes melhores e mais eficientes, não fui pego de surpresa quando li texto da Medida Provisória (MP) nº 1.303/2025, publicada em 11 de junho de 2025, que altera as regras de tributação sobre aplicações financeiras no Brasil, incluindo os assim chamados “ativos digitais”, estabelecendo uma alíquota única de 17,5% sobre ganhos de capital e rendimentos em qualquer operação.
Esta medida não é apenas arrecadatória. Acabar com a faixa de isenção e ainda por cima aplicar um imposto de 17,5% é uma forma de inviabilizar a circulação de qualquer outra moeda como meio de troca para pagamentos no Brasil usando as prestadoras de serviços de ativos virtuais nacionais.
Mas aqui temos que ter atenção. Até mesmo os termos que eles usam servem para nos confundir. A legislação e a regulação falam em “ativos digitais” ou “ativos virtuais”, quando na verdade só existem dois ativos economicamente relevantes que eles estão regulando: stabledollars (dólar tokenizado) e Bitcoin.
Como expliquei no post que publiquei em dezembro:
O termo “ativos digitais” é muito desidratado e não explica claramente o que esta classe de ativos oferece aos seus usuários. Na realidade, só dois tipos de ativos têm volume e importância econômica relevante neste setor: Bitcoin e os chamados stabledollars, que são dólares digitais lastreados em dólares em reserva bancária, mas que podem ser usados sem as inconveniências do sistema bancário tradicional, como controle de capitais ou custódia terceirizada.
O Bitcoin é uma moeda forte inconfiscável que impede o roubo de terceiros, seja por meio da diluição, seja por meio da transferência. É perfeito para qualquer pessoa no mundo que deseja manter e transferir sua riqueza no espaço e no tempo.
E stable dollars são necessários para bilhões de pessoas no planeta que não têm acesso fácil ao dólar bancário tradicional e que moram em países que forçam em seus pobres cidadãos suas shitcoins locais.
Com stable dollars e bitcoins qualquer pessoa pode guardar sua riqueza na moeda mais forte do mundo (bitcoin) ou pagar suas dívidas na unidade de conta mais utilizada no planeta (dólar) se assim desejar, sem precisar passar por qualquer banco ou moeda de sua jurisdição local.
Eu interpretei esta recente Medida Provisória e a tentativa de proibição de autocustódia pelo Banco Central no final do ano passado como continuação da mesma política.
O governo não busca só aumentar arrecadação tributária, ele busca também deixar todo mundo dentro do calabouço fiscal trancando todas as saídas e jogando a chave fora.
A sua chave-privada, no caso dos ativos digitais.
Se o Bitcoin é o ativo digital dominante, a Tether (USDT) é hoje certamente a stabledollar dominante. Aquela que não só ganhou mais volume e liquidez no mundo inteiro, como também a que passou e sobreviveu pelos testes mais difíceis.
A Tether é uma stablecoin que nasceu a partir dos quadros da Bitfinex em 2014 inicialmente para dar liquidez em dólar no mercado das exchanges chinesas, que impunha muitas restrições via sistema bancário tradicional. Com o passar dos anos, foi ganhando escala, efeitos em rede e hoje possui uma capitalização de mercado de USD 155 bi, mais de 350 milhões de usuários globalmente e 250 milhões de endereços ativos únicos. É popular para especulação com shitcoins em exchanges mas fora delas ganhou muita utilidade prática países com sérios problemas em sua moeda local como Nigéria e Argentina. Sua penetração em países subdesenvolvidos na África e América do Sul tem sido imensa pois agora, com uma simples conexão com a internet, qualquer pessoa pode ter uma conta em dólar sem precisar passar por uma instituição financeira.
Hoje a Tether possui lastro em reservas sobrecolateralizadas, ou seja, ela possui mais ativos líquidos em reserva do que USDTs emitidos e em circulação. O oposto de qualquer banco, os quais, pelo sistema de reservas fracionárias, mantêm só uma parte pequena em reserva e seriam incapazes de honrar qualquer volume significativo de saques sem ajuda externa (a.k.a banco central).
No auge do crash causado pela stablecoin algorítmica Luna (UST) em 2022, a Tether passou pela sua prova mais difícil. Quando o pânico tomou todo mercado, a USDT passou também por uma corrida bancária e teve que honrar aproximadamente mais de dez bilhões em saques em pouco tempo, com um pico de US$ 1 bilhão sendo retirado em uma única noite sexta-feira, 13 de maio de 2022.
Em um período de 48 horas, a Tether processou cerca de US$ 7 bilhões e mais US$ 4 bilhões foram retirados nos dias seguintes. Apesar da enorme pressão, honrou todas as solicitações de resgate a uma paridade de 1:1 com o dólar, mantendo sua estabilidade mesmo quando o USDT caiu brevemente para US$ 0,96 por conta das incertezas.
Dificilmente alguma instituição financeira teria sobrevivido a uma corrida bancária como essa sem pedir ajuda ao banco central.
Segundo os dados do primeiro quadrimestre deste ano, a Tether possui como ativos USD 120 bilhões alocados em dívida americana e é a sétima maior compradora de títulos do Tesouro dos EUA (U.S. Treasuries) entre entidades globais, à frente de nações inteiras como Canadá, México, Taiwan, Noruega e Alemanha. Além de títulos do Tesouro americano, a Tether também tem mais de 100 mil bitcoins em caixa e 80 toneladas de ouro. Ao todo, empresa reportou USD 5,6 bi de reservas em excesso e USD 1 bi de lucro no primeiro quadrimestre do ano.
Porém, até pouco tempo atrás, não era consenso entre várias pessoas no mercado que a Tether iria se tornar este gigante que é hoje.
Dentro do sistema financeiro internacional, o J.P. Morgan sempre foi o maior crítico da Tether. Em um longo relatório, o banco destacou a "opacidade operacional" da Tether, sugerindo que sua falta de divulgação detalhada sobre a gestão de reservas e auditorias confiáveis fosse uma fragilidade não só da empresa como do mercado das finanças digitais como um todo. No Brasil, há anos que acompanho o trabalho sempre sóbrio e ponderado do Fernando Ulrich, que é o especialista mais enfático em questionar a transparência, solvência e modelo de negócios da Tether.
Quando muitos nos ciclos passados atribuíam a alta do preço do Bitcoin à emissão de novas USDTs, Ulrich dizia que era possível ser otimista com o Bitcoin mas pessimista com a Tether:

Sua visão geral é que a Tether representa um enorme risco para o mercado do Bitcoin. No seu vídeo intitulado A fraude do Dólar Tether, Stablecoins e os riscos para o Bitcoin (Parte 2: Siga Desconfiado), Ulrich diz que quanto mais olha para os relatórios de auditoria da empresa, mais preocupado ele fica, e que a empresa é uma “pedra no caminho do mercado como um todo”.
Tendo chamado a USDT de fraude e acusado de espalhar FUD (Medo, Incerteza e Dúvida, em inglês) sobre a empresa, Ulrich inclusive insistiu em seu diagnóstico pessimista diretamente via X.com com o próprio Paolo Ardoino, um dos fundadorres da Tether:

Nesta discussão, Paolo insiste que demonstrou provas suficientes de reservas e que inclusive tinha mais transparência que as stables dollars concorrentes, ao que Ulrich responde com ceticismo.
Depois do auge da turbulência do Luna (UST) crash, mesmo depois de ter honrado bilhões em saques, Ulrich ainda se mostrou cético quanto à sobrevivência da Tether, dando a entender que era um sinal de alerta o fato de o co-fundador da Tether, Reeve Collins, dizer publicamente que não poderia garantir que honraria a paridade 1:1 da moeda a todos os seus clientes:

É importante sempre manter a atitude cética de don´t trust, verify para todo tipo de empresa emissora de stablecoins e Ulrich está correto em checar com rigor os dados apresentados. Porém, no caso específico da Tether, creio que a empresa mostrou ser bem gerida a ponto de conseguir passar por testes de liquidez tão difíceis. Como eu escrevi acima, é um erro comum de muitas pessoas ao analisar o modelo de negócios da Tether pensar que, assim como os bancos, eles também teriam o privilégio de operar com reservas fracionárias, mantendo apenas uma fração dos depósitos em caixa. Mas eles não tem este privilégio. Por não ter uma garantia de um banco central que pode sempre agir como lender of last resort e salvar um banco às custas da população, as stablecoins precisam manter sempre uma base sólida de reservas para sobreviver. Nenhum banco no mundo, nem mesmo os mais robustos, poderia suportar uma retirada de 12% de seus depósitos em uma semana sem intervenção estatal ou falência, como aconteceu com o Sillicon Valley Bank, como expliquei aqui. O Tether, por outro lado, conseguiu superar uma crise como essa sem apoio externo, demonstrando de fato uma solidez que estavam representados em seus documentos contábeis.
Outra fonte de crítica à Tether é sustentabilidade do seu modelo de negócios, sugerindo que ele depende de práticas arriscadas para gerar retorno. No entanto, a Tether é altamente lucrativa com baixíssimo risco. Essa lucratividade deriva principalmente de investimentos em T-bills de curto prazo, que oferecem rendimentos estáveis com risco mínimo, principalmente depois da alta do juro americano a partir do fim de 2021.
Esses ativos, com vencimentos curtos, garantem liquidez quase imediata e geram juros que fortalecem a posição financeira do Tether:
Este gráfico elaborado por Arthur Hayes mostra como a lucratividade aproximada da Tether explodiu depois do aumento do juro americano, o que permitiu ser empresa mais lucrativa do mundo por funcionário. Só analisando 2024, relatórios indicam que a Tether alcançou um lucro de US$ 13 bilhões. Considerando que a empresa tem em torno de 100 funcionários, isso nos dá uma lucratividade por funcionário de aproximadamente US$ 130 milhões.
Se a Tether não é a fraude prestes a colapsar como dizem seus críticos, para muitos ele seria o exato oposto: uma das mais poderosas armas para manter a hegemonia do dólar no mundo inteiro.
Curiosamente, neste campo se encontram tanto críticos da hegemonia do dólar como Mark Goodwin, autor do interessante livro The Bitcoin-Dollar: An Economic Monomyth, quanto o próprio secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, que recentemente escreveu com todas as letras no X.com:
“Cripto não é uma ameaça ao dólar.
Na verdade, stablecoins podem reforçar a supremacia do dólar.
Ativos digitais são um dos fenômenos mais importantes no mundo atualmente, mas foram ignorados pelos governos nacionais por tempo demais.
Esta administração está comprometida em estabelecer os Estados Unidos como um centro de inovação em ativos digitais, e a Lei GENIUS nos aproxima um passo desse objetivo.” (Grifei; Fonte: X.com)
A Lei GENIUS mencionada por Bessent já passou no Senado e está prestes a ser aprovada no Congresso americano.
Com o nome pomposo de Guiding and Establishing National Innovation for US (GENIUS), ela exige que cada stablecoin seja lastreada na proporção 1:1 pelo dólar e passe por auditorias mensais. Também permite que bancos, fintechs e empresas regulamentadas emitam stablecoins nos EUA e estabelece direitos para detentores em casos de falência e padrões de marketing. Era o que faltava para grandes bancos americanos entrarem neste lucrativo modelo de negócios da tokenização do dólar.
Embora o próprio Tesouro americano preveja que o mercado para o stable dollar possa atingir o patamar de USD 2 trilhões em custódia, esta dolarização via tokenização está longe de representar um grande reforço para a supremacia do dólar.
Não é incorreto dizer que a USDT e outras stabledollars possam dolarizar organicamente todos os países que ainda mantêm suas shitcoins estatais. Porém, movimento de substituição de fiat local por dólar tokenizado não representará nova demanda por dívida americana. Este processo só muda a origem da demanda.
No padrão dólar do jeito que está estruturado, a demanda por dívida americana vem dos bancos centrais responsáveis por emitir suas shitcoins locais e de hedge funds localizados em paraísos fiscais que ganham com a arbitragem de taxas de juros. Isso significa que os bancos centrais já lastreiam suas shitcoins locais com dívida americana. Quando alguém, por exemplo, deixa de usar o Real brasileiro para usar USDT no seu dia-a-dia, isso diminui marginalmente a compra de dívida americana para aumentar marginalmente a compra de dívida pela Tether, mas não aumenta a força do dólar nem a capacidade de rolagem da dívida americana.
O que de fato iria contribuir para manter a supremacia do dólar americano o governo americano não está disposto a fazer. O governo americano deveria primeiro se tornar solvente com superávits consistentes para reduzir o montante da dívida e conseguir dar um retorno real aos seus credores sem diluição da moeda. Um governo extremamente endividado com mais de USD 36 trilhões em dívida ou 124% do PIB é matematicamente incapaz de fazer isso. Dada a incerteza da capacidade do governo pagar esta dívida com retorno real, ele se torna incapaz de emitir dívida com vencimento longo, o que contribui mais ainda para o enfraquecimento do dólar.
Para manter a supremacia do dólar, o governo americano também deveria deixar de usar a rede financeira do dólar americano, como o SWIFT, como arma de guerra. O que tem afastado os países do dólar americano é seu uso como instrumento de repressão financeira contra inimigos. Por isso países como Rússia e China deixaram de comprar dívida americana e aumentaram suas reservas em ouro. Ninguém quer manter uma reserva de valor significativa em um ativo que pode ser confiscado com uma canetada.
Nem fraude, nem a salvação do dólar, penso que a verdadeira função da Tether é agir como um Cavalo de Troia da bitcoinização mundial.
Como já mencionei, hoje o lastro da Tether é majoritariamente composto por reservas em dívida americana de curto vencimento, mas a empresa também tem acumulado estrategicamente quantidades enormes de Bitcoin, conseguindo acumular mais de 100 mil bitcoins. Ao acumular reservas em Bitcoin, pode ela transcender sua função atual como stablecoin atrelada ao dólar e integrar suas operações diretamente em Bitcoin.
O sistema híbrido hoje existente já cria um ciclo para o aumento orgânico de Bitcoin: o aumento da demanda por USDT faz aumentar suas reservas em Bitcoin, o que eleva o preço do Bitcoin, reforçando a capacidade de emitir mais USDTs. Porém, como bem explicado por Saifedean Ammous em uma conversa recente com Jack Mallers, se continuar neste ritmo, com o Bitcoin aumentando e o valor do dólar diminuindo, eventualmente as reservas em dólar vão a zero em relação às reservas em BTC. O USDT teria cada vez mais reservas em Bitcoin e menos em dívida americana até se tornar uma outra camada do Bitcoin: USDT → BTCT. Por enquanto, a Tether funciona como um sistema monetário híbrido, conectando o mundo fiat ao acúmulo do Bitcoin, mas chegará um ponto em que a transição para um sistema novo bitcoinizado estará completa.
Alguns movimentos recentes da Tether reforçam este prognóstico. O primeiro é o fato de a Tether ter entrado como acionista majoritária na recém criada Twenty One Capital (XXI), liderada por Jack Mallers, ao lado da Bitfinex, Cantor Fitzgerald e do SoftBank. Segundo explicou Mallers, a Tether oferece capital, liquidez e apoio tecnológico para, no futuro, a XXI começar a ofertar serviços nativos ao Bitcoin. Além disso, em breve a Tether começará a utilizar o protocolo Taproot Assets, da Lightning Labs, para emitir novas USDT e integrar cada vez mais o ecossistema do Bitcoin em sua operação direta.
Todo brasileiro, todo argentino e todo nigeriano que usa o dólar via USDT está indiretamente contribuindo para a adoção do Bitcoin. É mais um daqueles aspectos onde o mundo caminha para o padrão Bitcoin mesmo sem perceber.
Simplesmente uma aula de como salvar a sua vida, Guilherme, parabéns!
Interessante. Já vi gente defendendo que o USDC era mais confiável.
Vou estudar mais.