O reinado de Henrique VIII e de seu filho Eduardo VI não ficaram conhecidos somente pela invasão à França ou pelo início turbulento da Igreja Anglicana, eles também deixaram uma marca histórica muito nefasta: a inflação alta.
Só entre 1542 e 1551 as moedas do reino perderam 1/3 do conteúdo de prata que tinham inicialmente. Foram sucessivos episódios de redução do percentual e/ou da pureza do metal, no maior período de inflação inglesa de todo o século XVI. O problema foi empurrado para frente até que a meia-irmã mais velha de Eduardo VI, Rainha Elisabeth I, assumiu o trono em 1588 com o propósito de tentar reorganizar o sistema monetário, tendo como seu principal conselheiro o famoso comerciante sir Thomas Gresham.
Seguindo os conselhos de sir Gresham, a própria rainha determinou o recolhimento e a recunhagem de todas as moedas do reino, um processo impopular e que guarda semelhanças com que hoje é entendido como “aperto monetário” ou QT (quantitative tightening). À época foi descrito como um necessário saneamento do meio circulante que buscava restaurar a qualidade das moedas que circulavam no território inglês. Durante este processo, a escassez de moedas foi tamanha a ponto de virar ditado popular que cidadãos de Londres estavam atormentados por uma “praga tríplice”: a pestilência, a escassez de moeda e a carência de comida.
Embora o efeito inicial dessa medida de fato contribuísse para escassez de meios de pagamento em território inglês, os resultados acabaram sendo excelentes e o saneamento promovido pela rainha fez com que a inflação durante o reinado de Elisabeth I fosse bem menor que seus antecessores, em torno de 50% em 38 anos.
Com uma moeda melhor à disposição e com mais liberdade de negociação pela revogação de várias leis, os ingleses em pouco tempo puderam viver sua própria versão do Renascimento, com um crescimento econômico mais sólido e desenvolvimento artístico enorme, não à toa que o teatro elisabetano é até hoje visto como um dos períodos mais ricos da história cultural ocidental. Foi um período que gestou gênios da filosofa como Francis Bacon, e também atingiu o ápice do teatro e da literatura por autores como Christopher Marlowe e o próprio William Shakespeare, que morreu rico com os frutos da sua produção literária e participação acionária nas companhias de teatro.
Embora necessários para restaurar a solidez na moeda, os esforços da Good Queen Bess tinham seus limites práticos. O saneamento promovido pela rainha não impedia o crime disseminado do recorte de moedas para reduzir seu conteúdo metálico, prática que era então conhecida como money clipping.
Uma primeira ironia do clipping é não ele não era simplesmente um crime de fraude ou roubo, mas sim um crime de traição, já que a própria figura do monarca era estampada na moeda e sua degradação um crime de lesa-majestade, um tipo de blasfêmia. Quem praticava o clipping, além de tirar proveito para si, também violava a própria dignidade do monarca cuja face estava lá estampada. A segunda ironia é que historicamente os maiores praticantes do recorte eram os próprios monarcas irresponsáveis, como o pai e o meio-irmão da rainha, que usavam da prerrogativa real para financiar seus governos perdulários. Não à toa que as malversações dos reis em assuntos monetários forneciam o grande material memético da época.
Na peça shakespeariana Henrique V, o próprio rei aparece na véspera de uma batalha e conversa com seus soldados:
“It is no English treason to cut French crowns, and tomorrow the King himself will be clipper (Ato IV cena I 222)
Mas não será traição para um inglês cortar coroas francesas, e amanhã o próprio rei estará usando suas tesouras (Tradução Barbara Heliodora)
Ao falar que o próprio rei será um clipper, ele anuncia que pretende decapitar o rei francês, jocosamente confessando também seus crimes monetários. Em outra peça shakespeariana, Rei Lear aparece em uma cena disfarçado e se gaba de poder fazer isso impunemente dizendo:
“No, they can't touch me for coining; I am the king himself” (Ato IV cena VI 82)
Por cunhagem falsa não me pegam; eu sou o próprio rei (Tradução Bárbara Heliodora)
Se o leitor dessas peças não tiver em mente duplo sentido político e monetário dessa referências, simplesmente não vai entender a fina ironia e a crítica econômica de Shakespeare nestas passagens.
Seja praticado por soberanos ou pela população em geral, o recorte de moedas fazia com que o meio circulante ficasse repleto de moedas de diferentes qualidades, o que nos faz retornar a sir Thomas Gresham e à famosa lei que ganhou seu nome, que normalmente é formulada simplesmente como: a moeda ruim expulsa a moeda boa.
Dizem os relatos históricos que esta famosa “lei” tem origem uma carta de Gresham à própria rainha Elisabeth I, mas essa foi só uma racionalização do economista britânico Henry Dunning Macleod em 1858, que simplesmente batizou de “lei” a tendência da moeda ruim expulsar a moeda boa observada por Gresham em suas cartas.
Mas devemos analisar esta formulação com o devido cuidado. Trata-se de um erro comum entre economistas (principalmente daqueles que defendem o monopólio da cunhagem da moeda) descrever a Lei de Gresham como simplesmente “a moeda ruim expulsa a moeda boa”, como se em uma economia onde circulam duas moeda em que uma retém valor e outra que não retém, as pessoas normalmente vão querer usar e circular no comércio as que não retém, ou seja, usar a moeda fraca, e guardar para si a boa, gerando uma escassez de moedas boas no mercado.
A conclusão falsa a que muitos chegam é que a livre competição de moedas não poderia ser confiável pois as pessoas vão querer só acumular e não gastar as boas moedas e que um controle desta “anarquia” por uma autoridade monopolista é necessário. Há pessoas que vão além e usam a Lei de Gresham para explicar inclusive a necessidade da invenção o papel-moeda, que remediaria este problema inerente ao dinheiro-mercadoria estabelecendo um padrão único.
Haja vista esta confusão, é bom colocar as coisas nos seus devidos lugares. O fato de o dinheiro ruim expulsar o dinheiro bom é algo comum na história humana desde a invenção de leis de curso forçado. Há relatos deste fenômeno na antiguidade e também no período medieval, basta vermos as referências do tratado escolástico sobre a moeda de Nicolau Oresme no século XIV. Por isso devemos antes nos perguntar: as moedas ruins expulsam as boas, mas para onde elas expulsam? E por que de fato expulsam?
A palavras exatas de Gresham escritas à rainha foram:
“all your fine gold was conveyed out of this your realm
(todo o seu ouro puro foi levado para fora deste seu reino)
Isso ocorria porque as moedas ruins e degradadas circulavam no reino da Inglaterra, pois os maiores comerciantes, principalmente aqueles que lidavam com o comércio internacional, guardavam as moedas boas e intactas de ouro para usá-las em seus negócios, já que era exigido uma boa moeda para pagar o invoice dos importadores no comércio internacional assim como hoje. Expulsar, então, é no sentido literal mesmo, já que as moedas boas saíram do reino da Inglaterra para serem utilizadas no mercado internacional, onde não havia controle de preços nem leis de curso forçado. Moedas piores de fato expulsaram melhores, mas somente em condições especiais.
Imaginemos que esteja em circulação uma moeda que pesa uma onça de prata e que tenha o valor nominal (ou valor de face) também de uma onça de prata. Depois de circular muito e ou após algumas raspagens de aproveitadores, esta mesma moeda passa a conter, de fato, menos que uma onça de prata. É esperado que em um livre mercado as pessoas passariam a aceitar esta moeda com seu valor reduzido e seu valor nominal seria ignorado ou descontado.
Mas suponhamos que o governo, por lei ou decreto, ditasse que as moedas ruins devessem ser aceitas, por curso forçado, pelo seu valor de face e não pelo valor do seu conteúdo metálico. O que o governo faz neste caso é impor um controle de preços via coerção, uma direta intervenção no mercado, fazendo com que todos sejam obrigados a aceitar gato por lebre, ou seja, o valor de fato como o valor nominal - na Riqueza das Nações de Adam Smith, são usadas as expressões by weight, ou seja, por peso, ou by tale, pelo valor de face, o que causa confusão para alguns leitores.
Note-se que neste caso a expulsão da moeda fraca não ocorre somente pelo raciocínio de que a moeda fraca perderá valor ao longo do tempo, ou seja, pela perspectiva futura de uma maior inflação. O raciocínio é: já que esta pessoa, o produtor do bem ou serviço, é obrigada pela lei de curso forçado a aceitar a moeda com menor valor como se maior valor tivesse, vou usar a de menor valor para realizar o pagamento. As moedas gastas e raspadas passam a circular com um ágio artificialmente imposto pelo governo e as moedas novas e puras, por corolário, passam a circular com um deságio. A expulsão se dá por esta distorção pois as pessoas não foram livres para escolher o bem monetário que desejam e isto também ocorria quando governos instituíam um preço fixo na troca entre a prata e o ouro.
No século XVI de sir Gresham as leis de curso forçado eram justificadas pela autoridade da soberania do rei; no reino era uma ofensa não aceitar a própria moeda real inclusive pelo seu valor de face, ou seja, no preço que o soberano determinar. As penas por não aceitar as moedas ruins como se boas fossem incluíam prisão, multas e confisco do valor usado. Com este pano de fundo punitivo, não é à toa que as moedas ruins eram as que mais circulavam. Por isso, a correta formulação da lei de Gresham é:
O dinheiro supervalorizado artificialmente pelo governo implicará a expulsão do dinheiro subvalorizado pelo governo
Quando, ouvindo os conselhos de Gresham, Elizabeth I aboliu muitas dessas leis e deixou que as pessoas avaliassem livremente os valores dos bad shillings, as moedas boas voltaram a fazer parte do quotidiano do reino.
Como dito acima, a “lei” de Gresham, que nada mais é do que esta tendência causada pela intervenção direta na economia, é invocada geralmente por pessoas contrárias à competição monetária, como na famosa obra de William Stanley Jevons, Money and Mechanism of Exchange (1882), onde Jevons rejeita os argumentos de Herbert Spencer a favor da cunhagem privada usando a lei de Gresham.
Mas, em situações em que não há nenhuma autoridade dando curso forçado ao dinheiro, tende a ocorrer o oposto: a moeda boa tende a expulsar a moeda má. Há vários exemplos onde isso ocorre, o mais comum e conhecido é no próprio comércio exterior, as boas moedas expulsam as más até hoje. O famoso fiorino d’oro (florin) foi durante séculos a moeda mais usada no comércio internacional pela sua reputação de manter a quantidade e qualidade do ouro durante séculos, por isso hoje é descrito como o “dólar da Idade Média”.
Mas não só no comércio exterior. Nos Estados Unidos, durante corrida do ouro na Califórnia, moedas de ouro privadas circulavam livremente, assim como as moedas privadas da Philadelphia Mint. Embora denominadas em dólar, não havia leis de curso forçado para obrigá-las, pessoas eram livres para precificá-las como quisessem ou rejeitá-las em seus negócios. Na prática, somente as melhores moedas eram aceitas pois as outras não eram representativas do seu valor em dólar. Essas condições espelhavam aquelas que se encontra no comércio internacional, onde não há leis de curso forçado obrigando os comerciantes a aceitar os meios de pagamento pelo valor de face.
O leitor pode corretamente pensar que estamos agora em outra era da história monetária e que já estamos há muitos anos sob o domínio absoluto da moeda fiat, onde toda essa discussão sobre a diferença entre valor de face e valor de fato não mais existe. Sob a vigência do nominalismo e desmaterialização do dinheiro, o único valor oficial de uma moeda fiat é exatamente o que nela está estampado, ou seja, uma tautologia onde a moeda de um Real vale um Real, a moeda de um Dólar vale um Dólar, e assim por diante, sem um conteúdo metálico relevante que possa servir de comparação. Faria sentido, então, ainda falarmos de lei de Gresham?
O lastro do dinheiro foi perdido, ou melhor, roubado pelo governo, mas as leis de curso forçado obviamente não sumiram. Pelo contrário, foram até ampliadas de várias formas, desde a proibição das assim chamadas “cláusulas ouro” ou até com mais variados controles de capitais pelos bancos centrais que existem em praticamente todas as jurisdições. Aproveitando-se desses novos poderes, os governos hoje em dia, muito mais gastadores e muito mais endividados do que qualquer soberano do século XVI, podem simplesmente emitir novas unidades a praticamente custo zero, aumentando a base monetária sem precisar de nenhum metal precioso para servir de base ou lastro.
A moeda fiat que temos hoje é produto integral do governo e não escolha do livre mercado. Se não houvesse um rígido controle de capitais, monopólios legais e leis de curso forçado que obrigam os bancos e os cidadãos a usarem as diferentes fiats, elas não existiriam e seriam rejeitadas pelos produtores e comerciantes que certamente usariam bens monetários melhores. As fiats, portanto, são formas ainda mais inferiores de dinheiro, pois são muito mais inflacionadas e exigem toda uma estrutura coercitiva para continuarem a funcionar. Porém, as pessoas e as empresas, assim como no século XVI, ainda querem uma boa moeda para guardar valor pelo bem ou serviço que estão oferecendo em troca.
O nascimento das moedas fiat foi, claro, uma forma de potencializar a senhoriagem, cujo único limite é a hiperinflação e/ou a completa inaplicabilidade das leis de curso forçado de uma moeda por questões práticas.
Se essas leis estiverem em vigor para forçar alguém a receber um dinheiro que ninguém ou a maioria não vê valor, simplesmente elas passam a ser desobedecidas. Tornam-se uma daquelas leis que simplesmente “não pegam” e são ignoradas pela ampla população. Para tais situações, é apropriado invocar a Lei de Thiers, batizada por Peter Bernholtz em homenagem ao político e historiador francês Adolphe Thiers, que descreve justamente situações onde leis de curso forçado são ignoradas e a moeda boa tende a expulsar a moeda ruim. Esta “lei” também é uma tendência universal: quem produz algo de valor quer sempre receber um bom dinheiro e, na ausência de leis que obrigam o oposto, este tende a ser o comportamento dominante do mercado, que acaba eliminando as moedas ruins.
Depois da invenção do Bitcoin, a digitalização do dinheiro agora age como uma faca de dois gumes para as fiats. Os governos ainda conseguem se aproveitar da existência disseminada e naturalizada da moeda fiat, mas leis de curso forçado não funcionam num mundo que há um dinheiro open source facilmente disponível a todos.
O Bitcoin, uma rede que você pode usar sem precisar pedir a permissão de ninguém e de forma soberana, praticamente tornou inoperável qualquer tipo de lei assim. Além da mudança tecnológica, está crescendo a consciência de que é profundamente injusto forçar alguém a aceitar um dinheiro que ele não quer aceitar pela troca de seu bem ou serviço que ele mesmo produziu.
A tecnologia também evoluiu a tal ponto em que um consumidor pode, usando certas carteiras digitais, pagar em fiat mas o vendedor receber em Bitcoin ou vice-versa utilizando um mecanismo de compra e venda instantânea. Isto é sinal de que estamos em outro mundo em que a estrutura montada para fazer uma fiat operar não mais se aplica. Podemos citar inúmeras outros arranjos. Por exemplo, hoje mesmo na Argentina, além existirem várias taxas de câmbio não-oficiais, é possível pagar contas em um restaurante usando QR codes emitidos por corretoras com taxas de câmbio paralelas (ver aqui).
Por essas razões, vejo equivocada a alegação de que as pessoas estão só acumulando Bitcoin sem querer gastar e que este padrão de manterá daqui para frente. Em condições de liberdade e quando muita gente souber da superioridade do Bitcoin, será mais comum que os produtores de bens e serviços exijam o pagamento na melhor moeda de todas. Isso forçará os consumidores a comprarem Bitcoin para conseguirem satisfazer esta demanda do mercado. A lei de Thiers irá se aplicar normalmente: o Bitcoin tornará outras formas de dinheiro obsoletas e elas não serão mais aceitas no mercado naturalmente. Se os bancos centrais de fato tentarem implantar suas moedas digitais para o varejo (Real Digital, Euro Digital, Dólar digital, etc.), elas também terão que competir com o Bitcoin e certamente irão perder pois são formais ainda mais inferiores de bens monetários. Viva a liberdade.
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Eu agradeço!
Ótimo texto Guilherme, parabéns mais uma vez pelo excelente conteúdo, existe um pequeno erro na segunda linha do segundo paragrafo acredito que o certo seria "percentual" ao invés de "percetual". No mais só elogios ao texto, uma ótima reflexão.
Excelente, no parágrafo que começa com o Bitcoin, existe um erro. "sem" permissão.
Parabéns!