O Vencedor Leva Tudo, a Moeda Vencedora Também
Bitcoin e o Renascimento da competição monetária
À Profa. Isali Dinaísa
Demorou para eu gostar de literatura. Até uma certa idade, ela só chegava para mim acompanhada dos livros-texto maçantes de língua portuguesa do colégio que regurgitavam aquelas classificações inúteis: trovadorismo, parnasianismo, romantismo, modernismo. O conteúdo deveria ser importante por que um dia “vai cair na prova”, então melhor anotar para não esquecer. Não é a melhor forma de cultivar no jovem o gosto pela literatura, não é mesmo?
Tudo mudou quando fui me preparar para o vestibular com uma professora que era vocacionada ao ensino da língua portuguesa. Ela era simplesmente a melhor. Mostrou para mim não só o valor da literatura enquanto arte, como também o cultivo da norma culta da língua portuguesa. Foi com ela que descobri meu gramático preferido, Napoleão Mendes de Almeida, e com ela comecei a gostar de ler romances. Meio professora, meio atriz, não só lia alguns trechos do Machado de Assis, ela interpretava os personagens, dando vida à narrativa.
Sua fama era tanta que até os professores regulares do colégio se sentiam intimidados e tentavam a dar aulas melhores em suas respectivas classes. Além de ser conhecida na cidade inteira como a melhor forma de se preparara para o vestibular, suas aulas eram tão vivas que criaram em mim o gosto pela leitura, algo que cultivo até hoje.
Mas suas aulas eram restritas a poucos alunos. Ela as ministrava no segundo andar da sua casa, em uma sala onde cabiam uns 40 ou no máximo 50 alunos apertados. Como uma artesã, ela sozinha preparava tudo, desde o material didático até as aulas propriamente ditas. Além do espaço físico, outra limitação era ela ser uma pessoa só, com 24h por dia como qualquer ser humano, e cobrava uma mensalidade . Por um lado, isso lhe dava renda para sustentar a família inteira com um bom padrão de vida. Por outro, muita gente que gostaria de ter aulas com ela não conseguia vagas ou simplesmente não podia pagar.
Desmaterialização e concorrência global
Essa era a vida pré-internet, ou, pelo menos, pré-Youtube (ou qualquer outra boa plataforma de vídeos). As melhores aulas e os melhores cursos eram pagos, quase sempre ministrados pessoalmente e ao vivo. Agora isso mudou. Nada impede (tecnicamente falando) que as melhores aulas e os melhores cursos sejam gravados com equipamentos semi-profissionais a custos baixos e copiados a custo zero para qualquer pessoa no mundo.
Se meus professores do colégio se sentiam incomodados com a concorrência local dessa professora excepcional, imagino agora que a concorrência é global. Antes da internet, os alunos eram obrigados a ter aulas com o professor escolhido pela diretoria do colégio e com o material pré-aprovado pela escola. Era difícil escapar. As opções eram muito restritas e centralizadas.
Mas ninguém quer ter aulas com um professor medíocre. Se você realmente está interessado no conhecimento e não no diploma ou algum tipo de certificação, você quer ter aulas com os melhores de sua área. Tanto faz se o curso será colocado no seu currículo ou não, você quer ter o conhecimento para usá-lo na sua vida ou porque isso vai enriquecê-la de alguma forma. Agora as melhores aulas e os melhores cursos podem ser desmaterializados para chegar à vida de milhões de pessoas em qualquer lugar do mundo, a qualquer horário, a custo marginal zero.
Vivemos em um mundo diferente. É incrível a quantidade de coisa boa que encontramos na internet, desde aulas curtas até cursos inteiros. Vez ou outra assisto a alguns vídeos de um canal chamado What I've Learned, com dois milhões de inscritos, composto de pequenas aulas sobre os assuntos mais variados possíveis, desde o consumo de ovos no Japão ou por que as vacas não estão destruindo o planeta. Ou, melhor ainda, um canal chamado 3Blue1Brown, com mais de quatro milhões e meio de inscritos, só com aulas animadas de matemática. Cada vídeo é melhor do que qualquer aula de matemática que eu tive no colégio (aliás, no canal há uma excelente explicação matemática do Bitcoin e do quão segura é a criptografia de 256 bits). Isso para citar exemplos que estão de graça no Youtube. Há outros incontáveis cursos especializados que podem ser adquiridos e ministrados à distância pelos melhores professores em suas áreas de especialização.
A concorrência agora é feroz. O processo de desmaterialização, seja do ensino, da música, da imagem ou do som, ou seja, de tudo que pode ser transmitido por canais de informação, gerou o que a literatura econômica chama de efeito “winner takes all” (o vencedor leva tudo), algo que é relativamente simples de explicar: caso ocorra alguma mudança tecnológica que diminua exponencialmente os custos de produção e distribuição de um bem ou serviço, nota-se que os melhores naquela atividade dominem quase inteiramente determinado nicho econômico. A concorrência com poucas barreiras à entrada gera um domínio de alguns atores porque eles simplesmente são os melhores no que fazem, gerando a distribuição de Pareto que encontramos em vários setores.
Geralmente a resposta política a este fenômeno é a imposição de barreiras artificiais à concorrência. Por exemplo: no começo dos anos 2000, o Napster foi fechado por violações de direito autoral; a resposta da classe jornalística à internet é a tentativa patética da instituição semi-oficial da checagem de dados, blue marks no Twitter ou recurso muitas vezes cômico à autoridade dos experts escolhidos pelos próprios meios jornalísticos; os taxistas por um bom tempo queriam usar o poder público para proibir transporte por aplicativo e em alguns casos foram bem sucedidos. Mas o que dizer sobre o está acontecendo neste exato momento com um dos bens mais importantes da economia: o dinheiro?
Desmaterialização da moeda
Há muito tempo que o dinheiro vem sofrendo um processo gradual de desmaterialização, pelo menos desde que cédulas bancárias lastreadas em metais preciosos passaram a circular com mais frequência no século XIX. Vivemos o final deste processo hoje mesmo.
Depois o que lastro metálico foi rompido pelo governos no século XX e o poder de compra da população foi na prática confiscado, as moedas fiat de hoje são praticamente apenas registros bancários e contábeis mantidos pelo sistema financeiro. No jargão da contabilidade dos bancos centrais, o “meio circulante” é uma ínfima parte composta por cédulas físicas ou papel-moeda de Real, Dólar ou Euro. Em Israel, a recente Lei Para a Redução do Uso do Dinheiro proibiu, com pena de prisão, o uso do papel-moeda para transações acima de certos valores.
O problema é que, diferente de outras áreas, o processo de desmaterialização do dinheiro nunca foi acompanhado da livre competição das moedas. As moedas governamentais nunca existiriam sem um controle restrito de capitais e de curso forçado. Isso é, e sempre foi, um disparate. Uma violação clara do direito de propriedade e da liberdade contratual. As pessoas só “aceitam” ganhar e manter Real (ou qualquer outra moeda ruim) no banco porque é proibido que elas livremente movimentem contas em moedas estrangeiras nas instituições financeiras do seu país. Só assim para os diferentes governos se beneficiarem da senhoriagem irrestrita do monopólio da emissão da moeda fiat, criando um curral onde o indivíduo não tem muito escolha senão usar o que o seu próprio governo chama de dinheiro.
O renascimento da competição monetária
Não era assim quando a moeda era ainda uma mercadoria física, quando várias moedas metálicas de diversos tipos circulavam em uma mesma jurisdição. Havia, por exemplo, duas dezenas de moedas inglesas em circulação entre 1558-1603, com diferentes denominações, pesos, percentuais de prata e ouro, fineza do metal, e, mesmo moedas nominalmente idênticas, mas com diferentes percentuais conforme a “safra”.
Voltando por um momento à literatura, Shakespeare alude a pelo menos 34 diferentes moedas em suas peças, tanto moedas inglesas (com seus apelidos) e estrangeiras que circulavam livremente pelo reino: angel, cardecu, copper, crown, dollar, crusade, drachma, ducat, ecu, eight-penny, elevenpence, eleven-pence farthing, French crown, gold groat, half-pence, halfpenny farthing, mark, mill-sixpence, noble, obulus, penny, pound, press-money (prest money), shilling, silver, sixpence, sixpenny, tester, tertern, three-farthing, threepence, twelvepence, twopence, entre outras.
Antigamente, sabia-se o que era um bom dinheiro, o difícil era ter um dinheiro bom. John Locke no Segundo Tratado Sobre o Governo Civil praticamente replicou o que Aristóteles havia escrito no livro um da Política sobre como deveria ser um bom dinheiro, aquela listinha de atributos que sempre encontramos: escasso, divisível, transportável, reconhecível e verificável.
Mas monarcas costumavam recolher as moedas, reduzindo seu conteúdo metálico e falsificações eram frequentes. Moedas metálicas se degradavam, eram raspadas, cortadas e podiam ser facilmente roubadas. Tudo isso tornava muito custoso verificá-las e custodiá-las com segurança. O problema do bom dinheiro sempre foi tecnológico e político. Como impedir a falsificação? Como impedir sua apropriação indevida, por governos ou ladrões? Como transportar com baixo custo? São questões que sempre acompanharam a história da moeda.
É curioso que a inovação tecnológica do Bitcoin tenha trazido de volta essa situação que era comum antigamente: a livre circulação de moedas, com a diferença que hoje ela já foram dematerializadas. Foi uma inovação mas também uma renovação. Olhando em retrospecto, fica claro como o breve período entre 1971 (quando o dólar perdeu de vez o lastro com o ouro) e 2009 (quando o Bitcoin foi criado) foi uma época muito sombria na história da humanidade. Simplesmente não havia mais moedas boas disponíveis às pessoas comuns. Cercado de proibições e controles por todos os lados, para minimamente preservar o valor do seu trabalho, alguém precisava se arriscar virando um investidor ou precisa financiar a dívida pública comprando um título do governo (isso quando ainda não vivíamos em um ambiente de juros negativos).
Se o Bitcoin prosperar enquanto dinheiro ele irá prosperar por seus próprios atributos. Absolutamente escasso, descentralizado, fácil de verificar, fácil de transportar e de manter. Não existem Bitcoins falsos verificados pelo nó. Imitações grosseira foram criadas (Ethereum, Litecoin, Bitcoin Cash entre outras shitcoins) mas nenhuma possui os mesmos atributos. O governos, com seus bancos centrais, vão começar a emitir suas próprias moeda virtuais. Agora deixemos para os indivíduos livremente decidirem qual será a moeda vencedora. Eu já fiz minha aposta. Alea jacta est.
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Eu agradeço!
Ótimo texto.