Os Primórdios - Parte IV: Mentes Brilhantes da Pré-História Bitcoinheira
O que Bitcoin e o filme Uma Mente Brilhante (2001) têm em comum?
Nesta série de artigos intitulada Os Primórdios, estudo os primeiros dias do Bitcoin, quando Satoshi ainda se correspondia em posts de diferentes fóruns ou através de e-mails trocados com os primeiros desenvolvedores antes de desaparecer por completo.
Na primeira parte, expliquei a importância do ostracismo de Satoshi com base em sua última comunicação pública em abril de 2011. Na segunda parte, recomendei um trecho de um podcast que foi ao ar ainda antes disso, em fevereiro de 2011 - quando o preço do bitcoin não era sequer um dólar - onde o apresentador explica o Bitcoin com uma clareza e entusiasmos surpreendentes para a época. Na terceira parte voltei um pouco mais no tempo e comentei os e-mails trocados por Satoshi Nakamoto entre 2008 e 2009, mas que foram revelados ao público só no começo do ano passado por Adam Back e Martti Malmi. Nesta quarta parte, porém, vou falar de algo mais antigo ainda: da pré-história do Bitcoin.
O Bitcoin não foi criado ex nihilo por Satoshi. Como explica o excelente The Genesis Book escrito por Aaron Wan Wirdum, o Bitcoin é resultado de décadas de pesquisas no campo da criptografia assimétrica que foram incorporadas aos ideias libertários em busca de um dinheiro resistente à censura e à inflação. Normalmente, quando falamos desta mistura entre criptografia e liberdade, citamos a influência de sociedades semi-secretas tecnofuturistas libertárias que se agregavam sob algumas denominações como High-Tech Hayekians, Extropians e os mais conhecidos Cypherpunks, cuja lista de e-mail Satoshi fazia parte.
Há porém um outro lado, digamos, mais boring do Bitcoin. Profissionais que não eram membros de nenhuma seita ideológica ou de grupos visionários, mas que fizeram a carreira na academia e trouxeram contribuições brilhantes enquanto trabalhavam em instituições tradicionais de pesquisa acadêmica e corporativa, cujas descobertas formam os pilares do Bitcoin, desenvolvendo ferramentas matemáticas que foram usadas por Satoshi na construção de endereços ou na cadeia temporal de blocos.
Quem lê com cuidado as próprias referências que o Satoshi fez no white paper do Bitcoin, publicado no dia 31 de outubro de 2008, percebe a importância gigantesca das descobertas que vieram de lugares bem conhecidos da pesquisa criptográfica. Foi fazendo isso que o artista bitcoinheiro Fractal Encrypt encontrou algo muito interessante. Ele notou que os mesmos dois autores foram referenciados em 3 das 8 citações:
São eles Stuart Haber e W. Scott Stornetta, os autores mais citados por Satoshi, que também chegaram a publicar com um tal de D. Bayer. Mas quem seriam estas pessoas e qual seria arquitetura criptográfica que eles construíram de forma tão poderosa que Satoshi a referenciou três vezes? Vamos aqui analisar cada uma das notas grifadas acima, transcrevendo as descobertas do nosso amigo Fractal:
Nota 3: Haber, S., & Stornetta, W. S. (1991). How to time-stamp a digital document.
No final dos anos 1980, Stuart Haber e Wakefield Scott Stornetta eram criptógrafos e pesquisadores da famosa empresa de pesquisa Bellcore que investigavam um problema fundamental na segurança digital: Como podemos provar a integridade de um documento sem depender de uma autoridade central?
Na época, o mundo estava saindo dos documentos físicos (contratos em papel, registros, etc.) para arquivos digitais. Ao contrário dos registros físicos que podem ser escritos à mão ou que possuem a marca do tempo do papel impresso, arquivos digitais podiam ser copiados, alterados ou forjados sem evidências visíveis de que isso foi feito.
Não havia como provar que um arquivo existia e nem a integridade de um documento em determinado tempo sem que uma autoridade central - um terceiro de confiança - atestasse. Foi só em 1991 que Haber e Stornetta perceberam que funções hash criptográficas poderiam ser usadas para criar carimbos temporais imutáveis. A ideia deles era simples:
- Cada documento digital seria hasheado usando uma função hash criptográfica unidirecional (one way function, a ideia mais bonita da ciência da computação segundo Silvio Micali).
- O hash seria armazenado em um registro público - inicialmente proposto como uma rede distribuída ou uma publicação em jornal.
- O próximo carimbo temporal incluiria o próprio hash anterior, formando uma cadeia imutável e sequencial.
Com essa cadeia de hashes enquanto carimbos temporais seria possível registrar uma história imutável, algo fundamental para Bitcoin, como expliquei no post História Imutável e Liquidação Final. Isso fez que com que fosse eliminada a necessidade de um terceiro de confiança sem perder a característica da imutabilidade - se alguém alterasse um documento, seu hash mudaria, quebrando a cadeia sequencial. Assim nasceu a ideia de um carimbo temporal verificável que qualquer um poderia confirmar.
Para demonstrar seu conceito publicamente, Haber e Stornetta implantaram seu sistema de carimbo temporal em 1995, publicando hashes de documentos na seção de classificados no The New York Times. Semanalmente, um hash de milhares de documentos era publicado em forma impressa no jornal, criando um registro público verificável e à prova de adulteração. Esta demonstração no mundo real foi uma das primeiras utilizações de um sistema similar ao timechain antes do Bitcoin.
Eles publicaram seu artigo de 1991 no Journal of Cryptology, introduzindo este conceito ao mundo acadêmico e sendo citado por Satoshi como uma das inspirações centrais do Bitcoin na terceira nota de rodapé do white paper.
Nota 4: Haber, S., Stornetta, W. S., & Bayer, D. (1993). Improving the Efficiency and Reliability of Digital Time-Stamping
Nos anos 90, entra também o terceiro nome citado por Satoshi: Dave Bayer, professor até hoje de matemática da Universidade de Columbia que estava pesquisando combinações e aplicações criptográficas. Ele se juntou a Haber e Stornetta para refinar e melhorar o protocolo de carimbos temporais.
Uma curiosidade de Dave Bayer é o fato de ele ter sido usado como “dublê de mão” de Russell Crowe no filme Uma Mente Brilhante (2001). No filme, Crowe interpreta o famoso matemático John Forbes Nash Jr.1 e o diretor gostaria de dar um aspecto realista às várias fórmulas que ele esboça no filme.

Para isso, pediu para que Dave Bayer desenhasse ele mesmo as próprias fórmulas matemáticas reais que aparecem no filme.
No mundo real, a expertise de Bayer em estruturas matemáticas e otimização ajudou a refinar a abordagem da árvore Merkle usada por Haber e Stornetta, tornando-a mais eficiente e com mais escala. Para quem não sabe, uma árvore Merkle é uma estrutura de hashes formada por folhas, ou seja, os blocos de dados ou hashes dos dados elementares, que quando sequencialmente agrupados eles próprios em outros hashes formam um hash raiz ou root hash, que representa o agrupamento de todos os dados na árvore.
A integridade desta estrutura é tal que qualquer mudança nos dados, por mínima que seja, refletirá uma mudança no hash raiz. No Bitcoin, esta estrutura é usada para a atestar a integridade de cada bloco do Bitcoin, já que novos blocos só são construídos a partir dos dados elementares dos blocos antigos.
O trabalho colaborativo dos três resultou no artigo de 1993, Improving the Efficiency and Reliability of Digital Time-Stamping, referência 4 no white paper do Bitcoin.
Nota 5: Haber, S., Stornetta, W. S. (1997). Secure names for bit-strings
No mundo digital, frequentemente queremos fazer referência a nomes e a informações de uma forma segura. Nomes precisam ser únicos, inalterados e cuja autenticidade seja fácil de verificar. Ao invés de pedir para uma autoridade central fazer isso, funções hash podem ser usadas para usar a própria informação do documento para atribuir um nome a ele. O paper citado na referência 5 também mostra que árvores Merkle podem ser usadas para organizar hierarquicamente os nomes.
O que eu acho mais interessante nesta história toda é que estes autores não faziam ideia de que suas descobertas poderiam ser usadas para criar o Bitcoin ou nada que assemelhasse a uma moeda digital. Em uma entrevista de recente, Stornetta confessou que nunca imaginou os diversos tipos de aplicações que suas invenções passaram a ter:
“Tanto Stuart quanto eu sempre sentimos que nosso método era a maneira adequada de garantir a segurança de registros digitais (…) Assumimos que era apenas uma questão de tempo até que todos os registros utilizassem esse método.
Embora tenhamos imaginado uma ampla gama de aplicações além de documentos comerciais, ficamos surpresos com a grande diversidade e variedade de aplicações.”
Mas isto é relativamente comum na história da ciência e da tecnologia. É frequente que uma descoberta em uma área do conhecimento acabe tendo aplicação prática em outra muito diferente, que os próprios inventores nunca tinham imaginado.
Por exemplo, Alexander Fleming descobriu a penicilina em 1928 por um acaso ao notar que uma cultura de Staphylococcus aureus havia sido contaminada por um fungo (Penicillium notatum), que inibiu o crescimento da bactéria. O GPS (Sistema de Posicionamento Global) foi desenvolvido inicialmente pelo Departamento de Defesa dos EUA para fins militares. Hoje ele é utilizado em inúmeras aplicações civis, como navegação de carros, cronometragem precisa para telecomunicações ou na agricultura de precisão. O sildenafil, o ingrediente ativo do Viagra, foi originalmente sintetizado pela Pfizer como um medicamento para tratar a angina pectoris, um tipo de doença cardíaca. Durante os ensaios clínicos no início da década de 1990, foi observado que o composto tinha um efeito inesperado nos pacientes: causava ereções.
O próprio Bitcoin já passou a ter aplicações que Satoshi nunca imaginava que iria ter. Hoje ele já funciona como comprador universal de energia ociosa e em breve integrará estrutura básica de segurança digital e monetária de indivíduos, corporações e países. Se ainda estiver vivo, Satoshi deve estar surpreso mas também satisfeito com as aplicações não-ortodoxas de sua descoberta.
Para ouvir uma conversa muito interessante sobre John Nash e Bitcoin, assista a esta conversa no canal dos Bitcoinheiros:
Excelente texto. Falando em Uma mente brilhante, John Nash refinou a teoria dos jogos. Seus estudos também são importantes para o desenvolvimento do Bitcoin. Ele escreveu um artigo bem interessante chamado "Ideal Money", onde critica o keynesianismo e fala sobre lei de Greshan, de leitura obrigatória: https://www.jstor.org/stable/1061553